sábado, 24 de março de 2012

A Realidade minha e do outro (Parte I)

Todas relações humanas envolvem emoções e sentimentos. Na realidade, todo relacionamento do sujeito com o objeto envolve sentimentos e emoções, melhor ainda seria dizer que todo contato da pessoa com a realidade envolve sentimentos e emoções. Como se vê, para entendermos bem essa questão do relacionamento da pessoa com o outro deve começar procurando entender o relacionamento da pessoa com a realidade.

E por onde começa o contato da pessoa com a realidade, ou com o mundo? Começa sempre pela senso-percepção, começa sempre pelos nossos cinco sentidos e termina, em sua última essência, nos sentimentos espirituais.

Esses sentimentos e emoções são os elementos que, de fato, nos aproximam ou afastam das outras pessoas, nos dão prazer, desprazer ou indiferença. O sentimento da empatia proporciona prazer no contato inter-pessoal, nos aproxima do outro e nos traz sensação de bem estar, o sentimento da apatia proporciona indiferença, um "olá, como vai?" formal, frio e distante e, finalmente, a antipatia produz o desprazer, o afastamento e a evitação do objeto antipático.

De fato, todos os sentimentos que experimentamos ao contactar a realidade, seja a realidade dos fatos, dos objetos ou das pessoas, são conseqüência direta dos valores que atribuímos à essa realidade. Da mesma forma, todos os diferentes valores que as diferentes pessoas atribuem à uma mesma realidade objetiva são os responsáveis pela construção das realidades pessoais de cada um, e cada um viverá particularmente sua própria realidade e só ela interessará.

Isso tudo nos leva a crer que as coisas, embora tenham todas um mesmo significado (objetivo), terão significações pessoais muito diferentes entre as diferentes pessoas. Uma barra de ouro, por exemplo, terá um valor universalmente reconhecido (objetivo) chamado, neste caso, de cotação do ouro. Entretanto, e não obstante, terá também um valor muito pessoal à cada pessoa que venha a possuí-la, dependendo da necessidade de cada um, do apego material ou não ao ouro, da vocação ou não em juntar posses, etc. Terá ainda um valor até em não possuí-la, ou seja, um valor independente da existência ou não do objeto (se eu tivesse uma barra de ouro...). Enfim, vivemos de acordo com nossa realidade pessoal, de acordo com nossa maneira de ver o mundo.

Para termos melhor noção do significado das coisas e daquilo que as coisas representam para nós, vamos começar entendendo o que é a Representação da Realidade, incluindo nela os fatos, as coisas, os objetos, as pessoas, os acontecimentos passados e as perspectivas futuras.

A percepção tem sido considerada como a base da cognição e deve ser verídica e pessoal. A percepção é um dos requisitos mais elementares para percebermos o mundo e conseguirmos um ajustamento realista à ele. Este ajustamento realista exige mais do que o reflexo fisiológico de nossos equipamentos sensoriais; exige satisfazer nossas necessidades, encontrar alguma segurança, explorar as oportunidades para o crescimento e, conseqüentemente, encontrar um sentido satisfatório para a nossa existência.

Este conjunto de elementos capazes de nos fazer perceber o mundo de acordo com nossa aptidão pessoal capacita-nos à uma visão mais diferenciada da realidade, oferece uma percepção que ultrapassa àquela simplesmente oferecida pelos órgãos dos sentidos. Através dos órgãos dos sentidos os objetos se nos apresentam corporalmente, objetivamente e, nas representações internas elaboradas pelo eu, os objetos se apresentam como imagens.

Portanto, a imagem deve ser sempre interior e ter sempre uma concepção individual, porém, apesar de individual, a imagem jamais deve ser emancipada totalmente da realidade. Soltando-se da realidade, de forma a produzir um mundo completamente novo e particular, estaremos incorrendo no domínio dos delírios e das alucinações.

Saber porque algumas pessoas se desesperam, se angustiam ou até se suicidam diante de fatos ou vivências que outras pessoas suportariam de forma diferente diz respeito, em parte, às diferenças entre como as coisas são de fato, e o que elas representam para cada um de nós. Portanto, saber um pouco sobre as diferenças entre a realidade externa à nós e a representação interna dessa mesma realidade poderá facilitar a compreensão das diferenças entre o mundo objetivo e o mundo subjetivo.

A nossa cultura registra em Platão (427-374 AC) a primeira reflexão sobre uma nova espécie de realidade experimentada pelo ser humano e que não corresponde exatamente à realidade objetivamente verdadeira: trata-se da realidade psicológica. Santo Agostinho (354-430 d.C.), considerado um grande estimulador dos recentes movimentos existencialista e até da psicanálise , inspirou sua obra na realidade das experiências interiores do ser humano, propondo a idéia de que os sentimentos são dominantes e que o intelecto é seu servo.

Em seu livro Confissões, Santo Agostinho foi o primeiro a centralizar-se na introspecção psicológica, sugerindo também, uma completa revisão do pensamento anterior, segundo o qual o raciocínio dedutivo era o único instrumento de constatação da verdade e da realidade (racionalismo). Ele negava, categoricamente, a capacidade do ser humano para encontrar a verdade confiando apenas em suas próprias faculdades.

John Locke (1632-1704), filósofo do século XVII, acreditava também na existência de duas realidades: uma delas conferida pela percepção dos objetos e denominada experiência exterior e uma outra, determinada pela percepção dos sentimentos e desejos, a que chamou de experiência interior. A doutrina de Locke foi muito bem desenvolvida por Berkeley (1685-1753) e por David Hume (1711-1776), os quais concluíram que nenhum conhecimento absoluto é possível, e aquilo que sabemos da realidade é baseado na experiência subjetiva (experiência interior), a qual não reflete necessariamente o quadro verdadeiro do mundo. Wilian James (1842-1910), no século passado, enfatizou a natureza altamente pessoal dos processos de pensamento e o caráter sempre mutável das percepções do mundo, alteradas que são pelo estado subjetivo da pessoa que percebe.

Portanto, já que a concepção da realidade é baseada na experiência subjetiva e, sendo esta capaz de conferir uma natureza altamente pessoal à percepção do mundo e aos pensamentos, então a realidade percebida decorrerá sempre do estado subjetivo do indivíduo. Cada consciência, em particular, integra e totaliza de maneira muito peculiar o seu relacionamento com o mundo. Desta forma, os fatos oferecidos pelo mundo à nossa volta resultarão numa representação única e individual para cada um de nós, e será esta representação que constituirá a realidade particular de cada indivíduo.

As representações são construídas pelas imagens dos objetos e pelos fenômenos percebidos nas experiências anteriores, e tudo isso será evocado de modo voluntário ou involuntário. São entendidas, as representações, como um ato de conhecimento conseqüente à reativação de uma lembrança ou de uma imagem mnêmica sem necessidade da presença real do objeto correspondente. Para que este conceito (que é também o conceito de cognição) não fique reduzido ao fenômeno da memória, como a grosso modo poderia parecer, podemos comentá-lo mais amiude.

O que existe, em psicodinâmica, ou é o indivíduo ou é o não-indivíduo, em outras palavras, tudo o que não é o sujeito é o objeto. Tudo o que estiver fora de mim será, para mim, o objeto (mundo objectual), em contraposição à eu mesmo, que sou o sujeito. Entendemos por imagens dos objetos e dos fenômenos percebidos nas experiências anteriores, toda impressão que o contacto com a realidade pode produzir em nós.

Representação, Apercepção e/ou Procepção

Portanto, a representação da realidade, daqui em diante chamada apenas de REPRESENTAÇÃO, transcende significativamente a simples percepção do mundo; é aquilo que o mundo passa a representar para a pessoa depois de nela introjetado ou por ela apreendido. Desta forma, enquanto o caráter da sensopercepção é melhor entendido a nível predominantemente fisiológico e neuro-sensorial, através dos cinco sentidos, a REPRESENTAÇÃO reporta-se, predominantemente, à subjetividade da realidade, e é impregnada de um valor afetivo particular do indivíduo, portanto, reporta-se a um nível afetivo-psicológico.

Uma simples rosa pode ser percebida fisiologicamente através da visão, tato ou olfato, porém, será ricamente representada através do subjetivismo da pessoa. Pode até ser dispensável, nesta representação, a presença física do objeto rosa. Da mesma forma, a palavra mãe, por exemplo, que pode ser percebida pela visão, se for escrita ou pela audição, se for falada, terá sua representação interna tocada pela afetividade de cada um e jamais será igual entre as pessoas.

O texto de Jung é bastante explicativo: Parece que o consciente flui em torrentes para dentro de nós, vindo de fora sob a forma de percepções sensoriais.

Nós vemos, ouvimos, apalpamos e cheiramos o mundo, e assim temos consciência do mundo. Estas percepções sensoriais nos dizem que algo existe fora de nós, mas elas não dizem o que esse algo seja em si. Esta é tarefa não do processo perceptivo, mas do processo de APERCEPÇÃO. Este último tem uma estrutura altamente complexa. Não que as percepções sensoriais sejam algo simples, mas a sua natureza é menos psíquica do que fisiológica. A complexidade da apercepção, pelo contrário, é psíquica".

Portanto, Jung identifica a REPRESENTAÇÃO da qual falamos, com a APERCEPÇÃO, algo responsável pela significação da coisa ou do que é a coisa em si. Neste caso, se a essência das coisas é determinada mais pelo pensamento e emoção que pela percepção neurológica, esta (a essência das coisas) será sempre pessoal e individual, então o significado essencial das coisas será igualmente pessoal e individual.

Allport é outro autor preocupado com a questão da representação do mundo. Para ele, o que Jung chama de APERCEPÇÃO é tratado com o nome de PROCEPÇÃO: mais um sinônimo para REPRESENTAÇÃO interna. Diz-nos, Allport, que "existir como pessoa significa ultrapassar o verídico e o cultural, bem como desenvolver a própria visão do mundo. Em cada momento cada um de nós realiza, à sua maneira, a sua transação entre o Eu e o mundo. Seria impossível enumerar todos os amplos tipos de orientação proceptiva que servem para distinguir os homens entre si. Uns têm uma mentalidade dominante para o passado, outros para o presente e alguns para o futuro. Para alguns o mundo é um lugar hostil, os homens são maus e perigosos; para outros é um palco para folias e brincadeiras".

Mesmos fatos, mesmas situações e mesmos acontecimentos podem ser experimentados por um número infindável de pessoas e representados de infindáveis maneiras. A guerra, por exemplo, onde participam milhares de pessoas, pode representar uma coisa diferente para cada um; embora seja traumática para a expressiva maioria das pessoas que dela participa, será mais traumática para os que neurotizam, demasiadamente traumática para os que psicotizam, apenas desagradável para alguns, e até boa para os vencedores e para os fanáticos, e assim por diante...

Enfim, cada personalidade apercebeu-se da guerra de uma maneira completamente diferente.

Perceber a realidade exatamente como ela é tem sido uma tarefa totalmente impossível para o ser humano. Nós nos aproximamos variavelmente da realidade, de acordo com nossas paixões, nossos interesses, nossas crenças, nosso acervo cultural, etc. Algumas atitudes mentais favorecem um contacto mais íntimo com a realidade, outras afastam deste contacto.

Será muito difícil para uma pessoa perdidamente apaixonada, elaborar um correto julgamento acerca da pessoa a quem ama. Normalmente, nestes casos, a força da paixão turva a avaliação do objeto amado. Da mesma forma e certamente, a realidade que um botânico experimenta diante de uma orquídea será diferente da realidade experimentada pelo poeta, diante da mesma orquídea.

A realidade do índio pode ser plena de determinados deuses que estão ausentes na nossa, assim como nossos micróbios não participam da realidade dele e assim por diante.

Embora a representação do real seja particular em cada um de nós, como dissemos, esta compreensão do mundo percebido e introjetado deve ser organizada segundo as regras comuns de um mesmo sistema cultural e, desta forma, tornar possível a convivência e a comunicação entre as pessoas de uma mesma cultura.

Este sistema sócio-cultural que reconhece o direito da APERCEPÇÃO (ou PROCEPÇÃO, ou REPRESENTAÇÃO) particular de cada um de nós, também estabelece uma determinada faixa de compatibilização entre os indivíduos, onde as diversas maneiras de experimentar e sentir o mundo não comprometam a viabilidade da vida gregária. A esta faixa de congruência sugerimos chamar de CONCORDÂNCIA CULTURAL. Ou seja, um conjunto de valores, normas e modelos capazes de definir um determinado grupo cultural e identificar os indivíduos de um mesmo sistema mediante um contacto mais ou menos consensual com certos aspectos da realidade.

Assim sendo, as infinitas variações pessoais na representação da realidade devem, apesar de infinitas, manter-se dentro da concordância cultural para serem consideradas normais. Seria como a variação infinita das impressões digitais. Mesmo diante da infindável variedade entre todas impressões digitais, há alguma concordância entre elas. No momento em que nos defrontamos com impressões digitais formadas por linhas retas e paralelas, ou regularmente quadradas e concêntricas, certamente estaremos diante de impressões digitais anormais.

Bandler afirma haver uma irredutível diferença entre o mundo e a nossa experiência sobre o mesmo. O pensamento, em seu desenvolvimento espontâneo, tem uma necessidade imperiosa de emancipar-se da realidade dos fatos apresentados pelos nossos sentidos. Este seria o mais importante e brilhante mecanismo responsável por nossa capacidade de abstração e de criação. Sem ele, a espontaneidade e a liberdade estariam irremediavelmente comprometidas. Existir como pessoa significa ultrapassar o verídico e o cultural, desenvolver uma concepção interior do mundo com características próprias, porém, mantendo-se sempre razoavelmente ligado à uma realidade recomendada pela concordância cultural. Como diz o ditado, "a aventura pode ser louca, o aventureiro, porém, necessariamente dever ser lúcido".

A capacidade da pessoa ser ela mesma está em seu esforço (e em seu sucesso) em compatibilizar o seu mundo interior com a realidade externa, controlar seu mundo de forma a viver nele dominando-o de maneira realística. Existe uma parcela de nossa consciência que é emancipada da objetividade exclusiva dos fatos e do mundo dos sentidos, uma parte que nos torna únicos na maneira de ser e sentir o mundo. Existe também, uma outra parcela da consciência que nos identifica a todos como membros de um mesmo sistema sócio-cultural, compatível com uma concordância coletiva e consensual. Allport facilita esta situação ao sugerir a idéia sobre PROCEPÇÃO INDIVIDUAL e PROCEPÇÃO CULTURAL.

A PROCEPÇÃO CULTURAL
representa o conjunto em nossa personalidade das respostas culturalmente formadas e estabelecidas, respostas culturais a determinados fatos vividos. A poligamia, por exemplo, é diferentemente representada pela cultura cristã ocidental e pela cultura islâmica oriental. Assim como o monoteísmo existente nossa cultura e o politeísmo em culturas indígenas.

Resumindo, podemos dizer que todo ser humano tem uma maneira peculiar e muito pessoal de representar a sua realidade, e faz isso com arbítrio suficiente para libertá-lo do estreito mundo dos sentidos. Por causa disso ele é capaz de criar, abstrair, pensar além do real e sonhar. Entretanto, mesmo diante desta diversidade representativa, mesmo respeitando sua liberdade ao irreal, está o indivíduo atrelado à concordância cultural de seu meio e, esta, funcionando como uma faixa de tolerância onde deverão situar-se as infindáveis maneiras de representar a realidade.



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POr: Ballone GJ - A Realidade do Outro -

Fonte: http://sites.uol.com.br/gballone/voce/outro.html
Imagens: google.com


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