sábado, 24 de março de 2012

Transformando as perdas na velhice

Transformando as perdas na velhice

Embora a velhice possa ser anunciada pela aposentadoria compulsória, pelo aumento da mensalidade do plano de saúde, ou pelo desconto no ingresso do cinema, muitas das perdas relacionadas a ela – como a da saúde, das pessoas queridas, de seu lugar na comunidade e na família, do status na sociedade, da mobilidade física, e finalmente de suas próprias escolhas - começam a ocorrer apenas muito mais tarde.

Atualmente, a velhice pode ser dividida em três faixas: “velho jovem” (de 65 a 75 anos); “velho médio” (de 75 a 85 ou 90 anos); e “velho velho” (de 85 a 90 ou mais...). Cada uma dessas faixas de idade tem suas próprias dificuldades, necessidades e também capacidades. Mas uma coisa é certa – embora boa saúde, bons amigos e uma boa conta bancária sejam elementos facilitadores na aceitação da velhice pelo próprio velho e pelos outros, é a atitude em relação ás perdas e a natureza dessas perdas que determinarão a qualidade de vida do indivíduo quando ela chegar.

Para algumas pessoas, cada limitação advinda com a idade significa uma humilhação, uma perda insustentável. Mas há também quem consiga ter uma visão menos negativa sobre o assunto, e é aí que está toda a diferença. Entre se ver como um semimorto e incapaz, ou em plena forma e capaz de tudo, existe a posição intermediária, que é ver claramente suas deficiências e tudo o que ainda se pode fazer apesar delas.

Embora a velhice não seja uma entidade isolada ou uma doença, ela traz inegavelmente um retardamento das funções físicas e um aumento de vulnerabilidades, que podem levar uma pessoa ativa e cheia de vida aos sessenta e cinco anos a literalmente se ajoelhar aos oitenta. Certas doenças orgânicas e irreversíveis do cérebro podem tornar uma pessoa dependente contra sua vontade. E mesmo que não sejamos atingidos pela artrite, pela doença de Alzheimer, por cataratas, doenças cardíacas, câncer ou derrame, somos lembrados todo o tempo, que estamos ficando velhos, através do aumento do número de frascos de remédios em nosso armário; quando passamos mais tempo procurando objetos perdidos do que fazendo uso deles; quando esquecemos o nome das pessoas e quando tudo demora mais para ser feito.

Mas, independente de estarem doentes ou saudáveis, pessimistas ou esperançosos, todos têm que enfrentar a visão preconceituosa que a sociedade tem da velhice. O conceito de “velho sábio” foi substituído pelo de que “quem é sábio não envelhece”, e é utilizado até o limite por aqueles que tem acesso aos mais modernos recursos para retardar o envelhecimento. E é difícil resistir a isso. Há uma internalização do preconceito, quando o grupo discriminado incorpora idéias e sentimentos negativos sobre si mesmo, se identificando com os valores do grupo que detém o poder e discrimina, que são os jovens adultos. E com os velhos acontece uma identificação dupla, pois o velho de hoje já foi um discriminador e lentamente mesmo sem sentir ou admitir, foi passado para o grupo discriminado.

Com exceções para Paulo Autran, José Mindlim, Fernanda Montenegro e outros poucos, a maioria dos velhos é tratada com pena ou condescendência.

Sexualmente são neutralizados pela mensagem silenciosa de que o desejo sexual na velhice é inconveniente, e são quase sempre obrigados a deixar de trabalhar quando ainda são “velhos jovens” e produtivos. Desistindo de sua sexualidade, o individuo desiste do prazer, da intimidade e conseqüentemente da maior auto-estima; privado de sua definição profissional e da justificativa social, o aposentado geralmente perde status e mais auto-estima. Quando se percebe que em todos os lugares os velhos são diminuídos de várias maneiras, fica cada vez mais difícil lutar contra todo esse processo. Mesmo para aqueles que aproveitam para viajar ou iniciar novos projetos, ou ainda passar mais tempo com a família, ou ainda trabalham em tempo integral voluntariamente, isso pode parecer inútil. Vivendo em uma sociedade que elimina do jogo da vida os seus velhos, aprendemos a compartilhar uma atitude de rejeição em relação a eles. E desde que, quem envelhece é visto, não pelo que é ou pode ser, mas pelo que não é ou não pode, fica difícil aceitar que evolução e crescimento podem ocorrer além da juventude e da maturidade.

Sem otimismo e energia para resistir a essa visão da sociedade, podemos não conseguir mudar o paradigma, e acreditar, bem antes de chegar lá, que aos sessenta e cinco anos estamos acabados.

No entanto, não existe consenso quanto a melhor maneira de envelhecer ou viver a velhice. Diferentes caminhos podem levar a uma alta satisfação na vida. Alguns continuam a manter uma vida ativa, substituindo por novos, relacionamentos e projetos que ficaram para trás; há também aqueles que substituem múltiplos interesses e participações na vida por um ou dois interesses especiais – netos ou jardinagem; e envelhecem bem alguns que aceitam as restrições de seu mundo, adaptando-se a elas, encontrando satisfação em uma vida de pouca atividade e isolada.

Há também os que mantêm com orgulho seus antigos hábitos e maneiras, mesmo diante do mais cruel golpe da idade; e ainda aqueles que nas ultimas décadas desistem da pose e do fingimento que se esmeraram em cultivar durante toda a vida.

De qualquer maneira, fica mais fácil enfrentar o envelhecimento se mantemos o espírito aberto e flexível o bastante para aceitar as perdas que virão sem dúvida, e se mantemos o interesse por pessoas e por projetos. Se desde a infância aceitamos o processo de amar e deixar partir, estaremos preparados para essas perdas finais. E essas perdas podem nos fazer perceber que é fundamental uma capacidade chamada de “transcendência do ego” – que se manifesta na capacidade de sentir prazer com o prazer dos outros; de nos preocupar com fatos não diretamente ligados aos nossos interesses; de investir muito de nós mesmos no amanhã, mesmo sabendo que não participaremos dos resultados. Seria como uma ligação com o futuro através das pessoas e de idéias, ultrapassando os limites pessoais, deixando algo para as gerações futuras. São os papéis dos avós, professores, mentores, reformadores sociais, colecionadores e criadores de arte, que assim mantêm uma ligação com aqueles que ficarão aqui, depois que partirem. Essa seria uma forma de construtiva de enfrentar a perda de nós mesmos, deixando um traço para as gerações futuras. Mas isso também pode ser feito quando há uma intensa ênfase na capacidade de viver o aqui e o agora. A velhice pode ser bem melhor quando o presente e o futuro são valiosos.

Contribuímos e continuamos a contribuir o tempo todo para o nosso próprio destino e a velhice não nos isenta dessa responsabilidade. Se nos comportamos de forma irascível, egocêntrica, fútil ou maldosa, temos que responder por isso. O modo como cada um envelhece é em grande parte preparado muito antes. Tudo o que um velho é hoje, com suas limitações, suas capacidades, e ainda seus potenciais, tem feito parte de suas crenças desde a infância e tem contribuído ao longo do tempo para o seu caráter na velhice – continuamos capazes, apesar de velhos, de crueldade, avidez, e más ações.

Existem aqueles que são e sempre foram serenos, alegres, cheios de vida tanto na juventude quanto na velhice. Mas, uma vez que os traços mais perturbadores podem ser acentuados pelas tensões que ocorrem geralmente mais tarde na vida, os maus podem ficar terríveis, os medrosos mais apavorados e os apáticos podem mergulhar numa semi-paralisia. Na velhice a pessoa é aquilo que sempre foi – só que mais intensamente.

Envelhecendo, o individuo continua a fazer suas escolhas de acordo com as suas necessidades estabelecidas já há muito tempo - envelhece de acordo com um padrão que tem uma longa história e que se mantêm consistentemente, com adaptações, até o fim da vida. As características centrais da personalidade vão se delineando cada vez mais claramente.

Porém, o homem nunca é um produto acabado – ele pode se refinar, se re-arranjar e se modificar mesmo nas últimas décadas de sua vida. Novas e importantes tarefas ou crises aparecem, possibilitando oportunidades para mudanças. A própria velhice pode dar origem a novas forças e novas aptidões não acessíveis em outras idades. Podemos adquirir maior sabedoria sobre a vida, maior liberdade, maior perspectiva e mais força. Podemos ter maior amor para com os outros, maior honestidade para conosco.

Pode haver também uma mudança no modo como são encarados os tempos difíceis da vida – de uma percepção sem esperanças para uma percepção de que as coisas podem melhorar, ou que poderia ter sido pior. E isso pode nos ajudar, não apenas a enfrentar as perdas cumulativas inexoráveis, mas também a crescer. E embora Freud tenha desaconselhado o tratamento psicanalítico para pessoas com 50 anos ou mais em seu texto “Sobre a Psicoterapia”, de 1904, é possível sim, mudar e crescer na velhice com a ajuda da psicoterapia.

Problemas emocionais iniciados ou intensificados pela idade como ansiedade, hipocondria, paranóia e especialmente depressão, podem ser aliviados, e transformações vitais podem acontecer, como, por exemplo, reconhecer o que não é mais possível, libertar-se das lamentações pelas mudanças indesejáveis e encarar a realidade como ela é. Isso traz novos interesses e atividades. Pode haver novos relacionamentos. O passado pode se tornar realmente passado, separado do presente e do futuro. Podem surgir sentimentos de serenidade, alegria, prazer e entusiasmo. A psicoterapia ajuda as pessoas idosas a recuperar o seu senso de auto estima, a perdoar os outros e a si mesmas; ajuda a encontrar novas adaptações, quando as antigas deixam de funcionar.

Alguns velhos sentam e esperam pela morte. Outros têm tantos projetos que não lhes sobra tempo para morrer. Alguns falam da morte, outros pensam na morte, alguns sofrem o suficiente para desejar a morte. E outros a negam, certos de que ela fará uma exceção no seu caso. Mas, em geral, os velhos não têm medo da morte – temem mais as condições em que ela possa ocorrer. Quanto mais plenamente se vive, menos se teme a morte. Porque a morte é uma certeza da vida, e quem tem medo de envelhecer tem é medo de viver.



”Quantidade e Qualidade de Vida”.
"Nova Velhice – Uma Visão Multidisciplinar"


Por: Judith Virost - no livro "Perdas Necessárias"
Fonte: http://www.tania.psc.br/artigos.asp
Imagens: google.com


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