
Sim, deve existir um canto ou uma construção erguida na sua memória. Uma espécie de país onde sua alma é cidadã, senhora, coisa natural como o rio, as árvores e as pedras desse mesmo lugar.
Existe um exílio para nossas almas. Uma porta secreta, um sótão, um vão por onde escapamos para descansar, recompor, curar. Existe um lugar onde a alma repousa sem vontade de eternidade e o coração aquieta sem pressa de morrer.
De todos os lugares por onde passei e vivi ficou a casa da minha infância, uma casa feita de várias outras casas pois a casa da nossa infância é feita de casa de pai e mãe, avô, tio, de sala de aula, de banco de igreja, de praça, de praia, de banho de rio e de uma infinidade de vislumbres, lembranças e flashes retidos na retina da alma e nos mármores da memória. Dentro dela ecoam vozes e risos, silêncios e melodias, passos, suspiros e todo tipo de sussurro das histórias contadas, dos amores vividos, das rezas, das dores caladas, dos segredos expostos. Dentro dela encontro muitas vezes o fio da meada, a chave do enigma, a solução da charada. De lá, vêm minhas pequenas certezas, meu código genético, meu norte e para lá retorno sempre que me sinto estrangeira ou me estranho. Lá me aguardam pacientemente os medos primordiais, aqueles que ainda latejam e assombram e também minha inocência, intacta e poderosa. Lá, estão as pontas tristes dos laços partidos, as palavras duras proferidas e atiradas como pedra, lá estão todas as palavras de chumbo, caídas no chão e também as palavras mágicas, as senhas para a paz, as bênçãos e os acalantos, lá estão, soltas como anjos as palavras em forma de asas. Lá está a minha impotência de menina, incapaz de evitar mortes e desastres e também a vocação para ser feliz e cumprir o percurso irresistível do viver tal qual semente, riacho, passarinho. Lá estão meus olhos incapazes de traduzir absurdos e desatinos e também os meus olhos ávidos, ocupados com a transparência de tudo e com a percepção dos diminutos e corriqueiros milagres.
Lembro pouco da felicidade. Lembro pouco da tristeza. As coisas não tinham nome. Assim como a caridade e a loucura. Tudo era. Tudo estava lá, cabia, fazia parte. A vida era assim daquele jeito embolado entre luz e sombra, bem e mal, graça e pecado, viver e nascer. Não havia espanto ou escândalo, nem beatitude ou danação. A vida transcorria inteira sem véus nem vergonhas. Os acontecimentos eram despudorados, explícitos e a morte despida de mistérios. O céu existia, assim como o inferno. Essa era uma das certezas que tornavam tudo mais fácil.
Da casa da minha infância guardo mais que recordações, datas e fisionomias. Guardo mais que velhas fotografias, receitas ou objetos deslocados. O que ficou, e esse é o grande tesouro, foi o lugar dentro de mim. A sensação redentora de pertencimento, de ter raízes, identidade, de ter, como tudo que é vivo, um fio condutor que me antecede e me continuará.
Soube esta semana que demoliram a casa da minha infância. Sei que dentro de mim ela continua intacta. Somos uma estranha espécie de caramujo a carregar nossas invisíveis casas, castelos e templos. Somos viajantes precavidos, levamos conosco abrigo, terra natal e identidade, e assim evitamos o exílio, o desterro.
Lembro Mario Quintana que nunca deixou de correr pelos corredores da sua casa de menino e copio Mia Couto: “O importante não é a casa onde moramos mas onde, em nós, a casa mora.”
Por: Hilda Lucas
Imagens:google.com

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