quinta-feira, 7 de julho de 2011

● Espiritualidade a partir de si mesmo

Existem duas correntes na história da espiritualidade, entre outras. Existe uma espiritualidade de cima e uma espiritualidade de baixo. A espiritualidade de baixo significa que Deus não nos fala unicamente através da Bíblia e da Igreja, mas também através de nós mesmos, daquilo que nós pensamos e sentimos, através do nosso corpo, de nossos sonhos, e ainda através de nossas feridas e de nossas supostas fraquezas.

A espiritualidade de baixo foi posta em prática sobretudo no monaquismo. Para conhecerem o verdadeiro Deus e irem ao seu encontro, os primeiros monges começaram convivendo com as próprias paixões, começaram pelo conhecimento de si próprios. Evágrio Pôntico formula esta espiritualidade de baixo na clássica frase: “Se queres chegar ao conhecimento de Deus, trata de antes conheceres-te a ti mesmo”.

O subir até Deus passa pelo descer até a própria realidade e pelo chegar às profundezas do inconsciente. A espiritualidade de baixo não vê o caminho para Deus como uma estrada de mão única que nos leva sempre em frente, em direção a Deus. Pelo contrário, o caminho para Deus passa por erros e rodeios, pelo fracasso e pela decepção consigo mesmo. O que me abre para Deus não é, em primeiro lugar, a minha virtude, mas, sim, as minhas fraquezas, minha incapacidade, ou mesmo o meu pecado.

A espiritualidade de cima começa pelos ideais que nós nos impomos. Parte das metas que o homem deve alcançar através da ascese e da oração. Os ideais que levam a isto são obtidos do estudo da Sagrada Escritura, da doutrina moral da Igreja e da idéia que o homem faz de si mesmo. A pergunta básica desta espiritualidade de cima é: Como deve ser o cristão? Que é que o cristão deve fazer? Que atitudes deve ele assimilar?

A espiritualidade de cima nasce do anseio do homem por tornar-se sempre melhor, por subir sempre mais alto, por chegar cada vez mais perto de Deus. Esta espiritualidade foi adotada sobretudo na teologia moral dos três últimos séculos e na ascese, tal como ensinada a partir da era iluminista. A psicologia moderna vê com bastante ceticismo esta forma de espiritualidade, porque com ela o homem corre o risco de ficar inteiramente dividido.

Quem se identifica com seus ideais, freqüentemente reprime a própria realidade, se ela não estiver em harmonia com seus ideais. E assim o homem fica interiormente dividido e enfermo. Ma as espiritualidade de baixo, ao invés, tal como posta em prática pelos monges da Antiguidade, tende a ser confirmada pela psicologia. Pois, para a psicologia, está claro que o homem só poderá chegar à sua verdade através de um honesto autoconhecimento.

Na espiritualidade de baixo, entretanto, não se trata apenas de ouvir a voz de Deus naquilo que eu penso e sinto, nas minhas paixões e enfermidades, e de assim descobrir a imagem que Deus fez de mim. Também não se trata apenas de subir a Deus descendo à minha realidade. Trata-se, antes, na espiritualidade de baixo, de que, ao chegar ao fim de nossas possibilidades, nós estejamos abertos a uma relação pessoal com Deus.

A verdadeira oração, dizem os monges, surge do mais profundo de nossa miséria, e não das nossas virtudes. Jean Lafrance, para quem a oração vinda do profundo é a oração que caracteriza a vida cristã, teve que por muito tempo viver a experiência do fracasso para chegar à verdadeira oração.

Ele escreve: “Todo esforço que fazemos por meio da ascese e da oração para nos apossarmos de Deus é um esforço na direção errada; com isto nós nos tornamos semelhantes a Prometeu, que quis se apossar do fogo do céu. É importante que reconheçamos até que ponto este esquema de perfeição persegue uma rota que contraria ao que Jesus mostrou no evangelho...

Jesus não construiu nenhuma escada de perfeição pela qual nós pudéssemos subir degrau por degrau para no fim chegarmos à posse de Deus, mas mostrou um caminho que leva às profundezas da humanidade... temos, pois, que escolher na encruzilhada o caminho que iremos seguir para chegarmos a Deus. O caminho de cima ou o caminho de baixo?

Com base em minha experiência, eu desejaria dizer-vos logo de partida: se quereis chegar a Deus através do heroísmo e da virtude, isto é problema vosso. Tendes o direito de fazê-lo; mas advirto-vos que, com isto, ireis bater com a cabeça na parede. Se, ao invés, quiserdes seguir o caminho da humildade, tendes que abraçá-lo com sinceridade e, não podeis ter medo de descer até o mais profundo de vossa miséria” (Lafrance, 1983:9s). A espiritualidade de baixo ocupa-se com a questão de saber o que devemos fazer quando tudo dá errado, como devemos conviver com os cacos e fragmentos de nossa vida, e como daí podemos construir algo de novo.

A espiritualidade de baixo é o caminho da humildade. Esta palavra hoje causa-nos dificuldades. Para Drewermann a humildade que São Bento descreve em sua regra como o caminho espiritual do monge é um exemplo típico do oposto à autodeterminação (Drewermann, 1989: 429). Mas quando lançamos um olhar para a literatura espiritual do cristianismo e de outras religiões, em toda parte nos deparamos com a humildade como a atitude básica de uma religiosidade autêntica.

Não devemos entender a humildade como uma virtude que nós mesmos sejamos capazes de conquistar, para isto bastando que “nos humilhemos” e nos rebaixemos. A palavra latina humilitas está relacionada com húmus, com terra. A humildade, portanto, é o reconciliar-nos com nossa condição terrena, com o peso que nos puxa para baixo, com o mundo dos nossos instintos, com o nosso lado sombrio. A humildade é a coragem de aceitar a verdade sobre si mesmo. A humildade designa nossa relação com Deus. Ela é o lugar onde eu posso ir ao encontro do Deus verdadeiro. Só ali, no mais profundo de mim, é que a verdadeira oração pode se fazer ouvir.



De: Grun, Anselm e Dufner
Imagens: google.com


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