domingo, 28 de abril de 2013

A dor da perda (1)



Será possível escapar de uma grande dor? Não. Mas existem maneiras de atravessar esse duro capítulo da vida. E, quem sabe, encontrar o lugar justo para abrigá-lo no coração

Foi com o peito ainda dilacerado pelo fim do seu casamento que Flávia M. entrou no Museu de Arte de Montevidéu. Quis ver uma exposição temporária de máscaras africanas, sem compromisso, durante uma viagem rapidamente providenciada pela família para que ela pudesse se distrair e relaxar. Ao examinar máscaras e utensílios expostos, seus olhos foram bater numa cuia ritual usada numa cerimônia realizada para aliviar o sofrimento. A cuia era mergulhada num grande recipiente com um líquido amargo e passada de mão em mão para que cada um dos integrantes da tribo sorvesse sua parte e a passasse adiante. “Saber que a dor que estava sentindo não iria durar para sempre me aliviou demais. Vi que era minha hora de beber da cuia, mas que, depois, ela seria passada à frente, para que outra pessoa pudesse experimentála”, conta Flávia. Quer dizer, de uma vez só e num curto passeio, a moça aprendeu algumas das grandes lições da vida: que o sofrimento nos torna iguais enquanto seres humanos, que todos passamos por ele e que exatamente por haver provado desse gosto é que podemos ser solidários com quem experimenta seu quinhão de amargor. A dor da perda pode sintetizar todas as dores. Ou seja, algo que se tinha como garantido simplesmente nos escorreu pelos dedos e não dá mais para recuperar. Acabou-se. Seja a perda de um amor, seja de um trabalho, da saúde, do prestígio ou da autoestima, enfim, de qualquer coisa que julguemos nossa, o fato é que nos encontramos diante da dor inexorável de quem perdeu. E esse sentimento pode nos afetar profundamente. A sabedoria, porém, está em saber que há diferentes maneiras de viver e reagir diante da perda, e ao doloroso período que a segue. É útil que conheçamos ao menos algumas delas. Porque, mais cedo ou mais tarde, vai nos chegar a hora da cuia.

Estádio vazio

As perdas permeiam o cotidiano. Desde as mínimas, as ínfimas, aquelas que a gente mal percebe e que incomodam como uma pedrinha no sapato. Ou também as médias, chatinhas, como o celular roubado ou o voo de avião perdido. São tantas que, se fossemos fazer as contas, teríamos uma boa dezena delas por dia. Muitas vezes elas causam um sofrimento não proporcional a seu tamanho: uma perda boba pode nos chacoalhar sem dó nem piedade, enquanto podemos passar batidos por algo que deveria nos derrubar no chão. Isto é, elas dependem não só delas mesmas, mas igualmente de nós.

São também tão variados os sofrimentos causados pelas perdas que poderiam até gerar um dicionário. Nessa hipotética enciclopédia, o escritor uruguaio Eduardo Galeano incluiria, por exemplo, até a dor do torcedor causada pela derrota de seu time. Ele o imagina “no silêncio retumbante do estádio vazio, onde a noite cai e o derrotado continua sentado, sozinho, incapaz de se mexer, em imensas arquibancadas sem ninguém”. Tem maior expressão de desconsolo e solidão, diante de uma perda menor, que essa?

E as dores parecem desproporcionais ao que acontece porque são frutos de uma soma incontável: não choramos por uma única perda, mas por várias que já nos ocorreram durante a vida. É um sofrimento cumulativo. Quando desabamos por nada, é porque a gota d’água transbordou. “A reação àquilo que perdemos depende muito do histórico anterior da cada um”, diz o neuropsiquiatra francês Boris Cyrulnik ao analisar o sofrimento gerado por traumas e choques.

Ele também diz que as pessoas que reagem bem às pequenas perdas (com um alto índice de resiliência, ou capacidade de voltar a seu estado normal) são as que mais bem se recuperam diante de um caso mais grave. Quem não admite perder nem em jogo de buraco obviamente vai ter muito mais dificuldade de superar uma dor intensa. Portanto, procurar elaborar as perdas menores do cotidiano pode nos preparar para acontecimentos mais difíceis.

Outro grande fator de recuperação, segundo Boris Cyrulnik, é o apoio que as pessoas recebem num momento difícil. Quanto mais se sentem amparadas durante e imediatamente após a situação de dor, melhor será sua resposta. Ajuda também nesse processo ter experimentado vínculos afetivos anteriores satisfatórios, sejam da família, sejam de amigos ou de um grupo. “Nesse caso, o sofrimento pode ser bastante atenuado”, afirma Cyrulnik. “As recordações que temos das ligações afetivas com alguém que nos amou muito influem enormemente na recuperação, mesmo que elas venham da tenra infância”, diz ele. Quem foi muito amado costuma reagir melhor às perdas e traumas porque elas não parecem ser totais e absolutas. “Temos outras referências internas de amor e afeto em que nos apoiar”, diz. Existe um lastro afetivo que nos segreda que elas são possíveis de serem superadas.

Em resumo, esta é uma das razões por que as reações emocionais diante do mesmo tipo de acontecimento variam de pessoa para pessoa: cada um vem com uma mochilinha diferente nesta vida, e dela fazem parte vivências anteriores. Influem também características de personalidade e jeitos diversos de se expressar: as pessoas podem sentir profundamente sem se expressar na mesma proporção ou pouco sentir e fazer um escândalo. O coração alheio é terra que não se conhece e ninguém pode julgar ninguém.

E quem não foi muito amado na vida ou não treinou o suficiente no cotidiano? Vai ter de contar com outros recursos, como procurar ajuda entre amigos e grupos de apoio ou fazer terapia quando a dor ocorrer. Como na vida, querer fazer tudo sozinho nesses casos é sempre mais complicado.


Liane Alves


Imagens: google.com


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